O acesso à educação é um direito historicamente negado a pessoas negras no Brasil. Em um país composto majoritariamente por pessoas negras, dados do IBGE do ano de 2017 apontam que apenas 9,3% da população preta e parda possui ensino superior completo. Na Física, com o avanço na carreira acadêmica, esse número tende a cair ainda mais, e a negação desse direito nos dias de hoje se vê traduzido na sub-representação dessas pessoas em espaços de produção de conhecimento. Nós do Astropontos consideramos que uma forma de combater a ideia de “não-pertencimento” de minorias na Astronomia é dar voz a essas pessoas e, nesse sentido, no #AstronomiaEmCores de hoje vamos conhecer Mateus Costa, que atualmente é doutorando no Observatório Nacional (ON), Rio de Janeiro.
Astropontos: Como você se identifica? Poderia compartilhar um pouco da sua trajetória?
MC: Homem, negro, cis. Durante a educação básica eu sempre fui um aluno extrovertido. Brincava (e brigava) muito na escola, mas em compensação sempre tive boas notas. Essa, inclusive, era uma das minhas principais características durante o ensino básico. Isso seguiu até o fundamental I e II. Na oitava série (atual nono ano), fui escolhido para participar de uma seleção para um estágio de 2 anos no Ministério Público do Estado da Bahia (promotoria). Fui aprovado e no ano seguinte (primeiro ano do ensino médio) comecei o estágio. Ali foi onde eu tive a primeira noção real de classes. A diferença entre minha realidade (financeira e social, por exemplo) e a das pessoas com quem eu trabalhava era muito grande. Além disso, eu e um dos seguranças éramos os únicos negros retintos daquele ambiente. No período do meu estágio, eu não dei tanta importância para o que isso significava. Tempos depois, eu entendi e comecei a fazer uma análise de certas situações que vivi naquele local. Durante o ensino médio eu sempre vi a universidade como uma realidade distante, até aquele momento minha família (que é muito grande) tinha conseguido formar apenas uma pessoa na faculdade: minha prima (hoje ela é mestra, professora de universidade pública e trabalha com questões raciais). Eu sempre a via como uma inspiração, e mesmo com todos ao meu redor imaginando este futuro para mim, muitas vezes eu não me imaginava em uma universidade. Sendo assim, ao final do ensino médio eu comecei a trabalhar e a universidade se tornou ainda mais distante. Depois de um ano na empresa eu decidi usar minha nota do ENEM para entrar em uma universidade e, por influência de um amigo (sim, eu teria escolhido história), me inscrevi para o curso de licenciatura em Física e fui aceito. O primeiro ano da graduação foi horrível no que diz respeito ao meu desempenho. Durante o primeiro ano, eu tentei conciliar trabalho e faculdade e, para mim, não deu certo. Percebi que, na faculdade, eu não era mais um bom aluno como no ensino médio e de imediato eu não podia fazer nada, pois queria a faculdade, mas precisava trabalhar. No final do primeiro ano e depois de uma conversa com os meus pais, eu decidi que sairia do emprego e me dedicaria exclusivamente ao meu curso, daí em diante as coisas tomaram outro rumo e aos poucos fui me tornando o aluno que eu queria ser. Depois de 5 bons e longos anos, eu me tornei licenciado em Física; 7 meses depois eu comecei o mestrado e, antes de defender a dissertação, eu fui aprovado no doutorado. Hoje sou Licenciado em Física pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB (Itapetinga), mestre em Física (Astrofísica) pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC (Ilhéus) e aluno do doutorado em Astronomia pelo Observatório Nacional – ON (Rio de Janeiro).

Astropontos: Poderia falar um pouco sobre os seus interesses em pesquisa em astronomia? Com o que trabalha?
MC: Depois que decidi fazer Física, eu acreditava que deveria trabalhar com algo relacionado aos corpos celestes. Sempre amei (e amo) olhar e fotografar o céu. Sou aficionado em filmes, séries e qualquer coisa que tenha essa temática. Porém, no meu primeiro contato com Astrofísica (ainda durante a graduação), eu decidi que não era aquilo que eu queria (pelo menos não da forma como tinha sido apresentada), então durante a graduação eu segui outros rumos, trabalhei com espectroscopia Raman e fiz meu TCC baseado nesse trabalho. A Astronomia volta para minha vida no mestrado. Caí de paraquedas na Astrofísica do meu programa de pós-graduação. Não foi a linha que indiquei durante a seleção, mas por alguns motivos (que hoje não têm importância) acabei ficando na astronomia (e amando). Trabalhei com Astrofísica Estelar no mestrado, estudei a evolução rotacional de estrelas jovens de baixa massa e isso me encantou muito. Hoje, no doutorado, eu trabalho com fases de transição em estrelas de alta massa.

Astropontos: Você teve dificuldade de acesso à educação básica? Sofreu preconceitos?
MC: Nunca tive dificuldade no acesso à educação básica. Meus pais não conseguiram terminar o ensino fundamental, mas eles sempre souberam da importância dos estudos na vida de uma pessoa, e fizeram tudo o que foi possível para que eu não tivesse problemas em relação a isso. Falar sobre preconceito no ensino básico é um pouco complicado. Nós, negros, demoramos muito até entender que uma brincadeira pode não ser uma simples brincadeira. Durante o ensino básico eu ouvi muitos xingamentos racistas e uma das coisas mais marcantes que me lembro foi quando eu questionei a minha cor. Lembro que eu não entendi por que eu tinha aquela cor e eu não suportava as piadas. A medida que fui crescendo, as piadas não diminuíram tanto, mas acabei aceitando com naturalidade. Eu coloquei limites do que era aceitável mesmo sabendo que a linha entre o aceitável e o inaceitável era muito tênue. Demorei muito até tomar consciência do que era um racismo institucionalizado e como ele afetava as minhas relações desde a infância. Atualmente tento aprender muito e aos poucos vou me tornando um negro consciente.
Astropontos: Como isso mudou na universidade durante a graduação? Foi melhor, pior, ou não houve mudança?
MC: Durante a graduação as coisas mudaram. Não acabaram, pois existiam em menor grau e de forma disfarçada (era preciso muita atenção para entender os sinais). Porém, na graduação eu não podia mais colocar a culpa na ingenuidade de uma criança, pois todos já tinham consciência dos seus atos, o que tornava a situação muito pior. Muitas vezes alguns de nós, negros (e todas as pessoas que sofrem preconceitos através de piadas veladas), somos socialmentes obrigados a aceitar para fazer parte de um determinado grupo. Essa aceitação é um problema que devemos resolver com urgência, mas ela faz parte do nosso cotidiano e é alimentada todo dia.
Astropontos: Como isso mudou na universidade durante a pós-graduação?
MC: Durante a pós o amadurecimento dos alunos é evidente, o que não exclui atitudes racistas tanto por parte de discentes quanto de docentes. No meu caso, não tive problemas neste sentido durante o meu mestrado, entretanto, o tema (racismo) não era discutido em nenhum momento. A individualidade dos grupos de pesquisas também não permitia fazer uma análise de como esse tema seria visto no meu programa.
Astropontos: Por fim, houve alguma diferença no ambiente acadêmico (grupo de pesquisa, conferências)?
MC: Quando faço uma análise do meu percurso, constato algo que é muito evidente: as posições de poder na academia (em especial na área de exatas) são dominadas por pessoas brancas. Durante a graduação eu tive apenas um professor negro. No mestrado eu não tive professores negros. Os coordenadores dos colegiados, tanto da graduação quanto do mestrado, eram sempre brancos. Participei de um evento da Astronomia e ali ficou muito evidente o “domínio branco” nessa área. Lembro-me que fiquei assustado e até um pouco acanhado.
Astropontos: Há algo que gostaria que seus colegas que nunca sofreram preconceito soubessem?
MC: O preconceito dói. Ele diz para você que, com base na sua cor, você não deveria estar onde está. Ele lhe subjuga e muitas vezes faz você querer correr para longe, desistir e viver algo imposto pelo racismo. Faz com que os que o enfrentam, vivam todo tempo na defensiva.
Astropontos: Na sua opinião, o que a comunidade pode fazer para ser mais diversa e inclusiva?
MC: Inclusão. A gente precisa entender que todo lugar é nosso lugar também. A comunidade precisa permitir (porque é uma obrigação) essa inclusão. Uma inclusão justa, em que o negro seja capaz de trilhar o caminho que deseja sem ter que enfrentar problemas adicionais e enraizados como o racismo.