Este é o terceiro de uma série de textos em que o Astropontos procura conhecer um pouco mais da história de negros e negras na astronomia brasileira. Sabemos que o meio acadêmico científico é racista, queiramos ou não admitir. Por isso acreditamos que é fundamental a criação e manutenção deste espaço para a voz desses pesquisadores, para que não só possam contar um pouco do seu trabalho, mas também possam compartilhar suas trajetórias de vida e sua experiência em lidar com o preconceito racial dentro da academia. Neste texto, contamos um pouco da história do Prof. Dr. Ivan Soares Ferreira, hoje professor da UnB (Universidade de Brasília). Gostaríamos profundamente de agradecê-lo pela oportunidade de escutar sua história.
A: Como você se auto-identifica? Poderia compartilhar um pouco da sua trajetória?
Prof. Dr. Ivan Soares Ferreira: Apesar de eu me considerar negro, esta identificação não é unânime (para a família da minha ex-esposa, eu era apenas “sujinho”), nem justa. Talvez pardo seria o mais adequado. Uma mistura. E eu gosto de ser uma mistura. Sobre minha trajetória, tenho 40 anos, sou há 11 anos professor da Universidade de Brasília, onde também fiz a graduação (bacharelado em física) e o mestrado. O doutorado foi feito no INPE, no grupo de cosmologia experimental. Ainda tive a chance de passar um tempo em Portugal e na França, sempre trabalhando com projetos ligados à radioastronomia e à Radiação Cósmica de Fundo em Micro-ondas (RCFM).
A: Poderia falar um pouco sobre os seus interesses em pesquisa em astronomia? Com o que trabalha?
Prof. Dr. Ivan Soares Ferreira: Eu gosto da área experimental da física, e de trabalhos de física fundamental. Mais especificamente me envolvo com projetos da física dos plasmas em diferentes ambientes: o cosmológico, em que temos o plasma primordial, cuja imagem se vê na RCFM; o do meio interestelar, com qual agora tenho trabalhado com regiões de formação estelar; E por fim o plasma gerado na nossa atmosfera, que produz emissões em rádio e em raios gama, as quais estamos modelando.
A: Você teve dificuldade de acesso à educação básica? Sofreu preconceitos?
ISF: Meus pais acreditavam na educação como alavanca social, assim de alguma forma e com grande esforço eles me colocaram em boas escolas. Então sinto que fui blindado. Além disso, a educação em casa era bem rígida, de tal modo que eu ouvia em casa todo dia que eu tinha que fazer duas vezes melhor para chegar em algum lugar, tinha que ser o primeiro a chegar e o último a sair, se quisesse alguma coisa. Tal pensamento está impregnado em mim e se tornou uma armadura.

Diante do que falei, eu nunca parei para prestar atenção se sofria preconceito ou não, eu sabia que deveria seguir em frente, sem opção. O preconceito nítido, memorável, declarado, apenas nas competições de judô. Quando você fica diante de uma torcida, ginásio lotado, eles vão falar de tudo para te fazer sentir mal.
A: Como isso mudou na universidade durante a graduação? Foi melhor, pior, ou não houve mudança? Como isso mudou na universidade durante a pós-graduação?
ISF: Eu não consigo ligar nada dentre as coisas ruins que aconteceram estes anos a um preconceito de cor. Muitos outros fatores pesaram mais.
A: Por fim, houve alguma diferença no ambiente acadêmico (grupo de pesquisa, conferências)?
ISF: Eu sempre me senti recebendo um carinho por parte dos pesquisadores indianos e frieza dos outros.
A: Gostaria de compartilhar alguma(s) experiência em particular? Há algo que gostaria que seus colegas que nunca sofreram preconceito soubessem?
Na sua opinião, o que a comunidade pode fazer para ser mais diversa e inclusiva?
ISF: Esta é a parte em que eu posso contribuir mais para a discussão. Eu sempre contei quantos negros tinham por onde eu passava. Nas escolas em que estudei, nunca mais que 2 na minha turma. Na minha turma de graduação: nenhum. Igualmente na pós-graduação: zero. Hoje, como colegas professores, há 4 negros/pardos dentre 71 no Instituto de Física. Então para mim a expressão do racismo se dá não por uma ação contra mim, mas pela falta de outros iguais a mim. Não é na ação individual, é na estrutura.
Ser professor é uma coisa incrível, uma grande honra. Fazer ciência é apaixonante. O nosso dever e desafio é gritar esta mensagem até que todos ouçam. Nossa obrigação é mostrar que existe esta possibilidade de vida e carreira e que ela é boa.
Como fazer?
Temos que ir onde as pessoas estão. Falar a linguagem que elas entendam. Dialogar quebrando um conceito ruim de elite que existe quando se fala de ciência e universidade. Ou seja, ações de extensão universitária, divulgação científica em escolas das periferia, em praças públicas, nas rodoviárias, coisas deste tipo.
O que, no entanto, me mostra que esta missão é muito difícil, são dois obstáculos: uma juventude sem sonhos, ou seja, é aquela que não se importa, não obstante o espetáculo que você apresente diante dela; E uma juventude sequestrada pela igreja, bastante abundante, que te enxerga como inimigo. Eu não sei o que fazer com relação a estes dois grupos, prefiro focar em não perder aquela parcela dos alunos que ficaram fascinados pela palestra ou experimento que apresentei. Pavimentar o caminho para que estes cheguem à universidade.
Ações que dão certo: experimentotecas, observatórios, planetários. Programas de iniciação à docência (PIBID) e iniciação científica no ensino médio (PIBIC-Jr). E em todas estas ações, inclua momentos para falar de mulheres na ciência, de negros ciência, para criar uma identificação.
post-scriptum: Com profunda tristeza, recebemos notícia do falecimento do Prof. Ivan Soares Ferreira alguns dias após a publicação desta entrevista – originalmente realizada no dia 18 de Julho. Em momentos como esse, pouco conseguimos dizer, a não ser lamentar esta perda e desejar aos familiares e amigos a serenidade necessária para enfrentar esta dor. Prof. Ivan deixa, com certeza, seu legado junto aos estudantes que formou e orientou e junto a todos que conviveram com ele.
Sentiremos falta professor!
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Um ano sem esta pessoa extraordinária! Saudades eternas meu querido irmão e meu melhor amigo!
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