Este é a segunda postagem de uma série de textos em que o Astropontos procura conhecer um pouco mais da história de negros e negras na astronomia brasileira. Sabemos que o meio acadêmico científico é racista, queiramos ou não admitir. Por isso acreditamos que é fundamental a criação e manutenção deste espaço para a voz desses pesquisadores, para que não só possam contar um pouco do seu trabalho, mas também possam compartilhar suas trajetórias de vida e sua experiência em lidar com o preconceito racial dentro da academia. Neste texto, contamos um pouco da história da Dra. Ana Carolina Feliciano, hoje pesquisadora pós-doutoranda no ON (Observatório Nacional – RJ). Gostaríamos profundamente de agradecê-la pela oportunidade de escutar sua história.
Astropontos: Como você se auto-identifica? Poderia compartilhar um pouco da sua trajetória?
Dra. Ana Carolina Feliciano: Oi, Carlos! Muito obrigada por me convidar para participar! O Brasil é um país muito diverso e nessa diversidade eu me considero negra. Nasci e cresci em São Gonçalo, uma cidade na região metropolitana do Rio de Janeiro, filha de pais separados, fui criada pelos meus avós durante boa parte da minha vida.

A: Poderia falar um pouco sobre os seus interesses em pesquisa em astronomia? Com o que trabalha?
ACF: Desde sempre eu fui fascinada pela profissão de pesquisador. Eu achava o máximo quando passava algo na TV do tipo: ‘pesquisadores da universidade tal descobriram que…’ Então eu nem sabia direito do que se tratava, mas sabia que era o que eu queria ser. Na adolescência comecei a gostar do céu. Fiz graduação em Física e me interessei ainda mais por astronomia e decidi me especializar nela. Eu trabalho com pequenos corpos do Sistema Solar, são eles: asteroides, cometas, objetos que estão além de Netuno, e eu os estudo a partir de análises observacionais. Faço propostas para telescópios, obtenho dados, refino, analiso, tudo isso para tentar entender melhor a composição superficial juntamente com a história deles durante a evolução do Sistema Solar.
A: Você teve dificuldade de acesso à educação básica? Sofreu preconceitos?
ACF: São Gonçalo tem muitos bairros e no que eu cresci, Jardim Catarina, as escolas públicas sofriam muito com a falta de professores, falta de material didático, merenda, carteiras, ventiladores… por conta disso, com 13 anos eu passei a estudar no Centro da cidade, em um colégio público com uma estrutura um pouco melhor, contudo a 50 minutos da minha casa. Por ser mais próximo do centro, a escola já possuía alunos com situação financeira melhor que a minha. Então além da distância, do tempo gasto no trânsito e dos perigos da rua, passei sim por um pouco de discriminação devido ao local onde eu morava, que já em 2004 era considerado perigoso, e por não ter condições financeiras similares a dos demais alunos. Lembro uma vez que a professora de artes pediu para levarmos uma tela para fazermos uma pintura e eu fiquei com 0 por não ter podido comprar a tela. Ela não acreditou que existia alguém que não tivesse condições de comprar uma tela.
A: Como isso mudou na universidade durante a graduação? Foi melhor, pior, ou não houve mudança?
ACF: Quando terminei o ensino médio comecei a trabalhar formalmente (8 às 17h) em um escritório de contabilidade e 6 meses depois, ingressei na universidade. Até o terceiro período consegui conciliar, depois não deu mais. Meu avô sofreu um acidente que tirou sua vida e eu decidi que iria priorizar o que eu realmente queria. Comecei a dar aulas particulares, fui bolsista em caráter emergencial (quando você ainda não pode fazer um estágio nem nada, mas a universidade entende que, sem o suporte financeiro, você vai ter que sair), depois fui monitora da Casa da Descoberta (UFF), e por último fui bolsista do PIBID, um programa de incentivo a docência. Desde o começo da graduação eu sofria preconceitos. Alguns professores achavam que eu não tinha tanta capacidade quanto um aluno que só estudava. Frisei o ‘aluno’ porque era exatamente isso, por ser mulher, alguns ainda achavam que eu não tinha a mesma capacidade de aprender que os alunos. Financeiramente conseguia me manter, ajudar um pouco em casa e já estava meio que trabalhando na minha área, então foi melhor (não mais fácil) que na educação básica.
A: Como isso mudou na universidade durante a pós-graduação?
ACF: Na pós graduação em Astronomia eu fui muito acolhida. Fui a primeira orientanda do meu orientador e ele deixou claro desde o começo que estávamos aprendendo juntos. Ele sempre me incentivou a participar de congressos, me deu autonomia na minha pesquisa, enfim, cresci muito profissionalmente com ele. O ambiente era completamente diferente. Não tinha a rivalidade da Física entre os colegas da pós, as avaliações das disciplinas eram mais direcionadas. A dificuldade foi o inglês, ele estava presente em praticamente tudo e eu não tinha muito conhecimento. Quando decidi fazer o Doutorado Sanduíche, que é tipo um programa de intercâmbio, tive que fazer o Toefl e foi muito complicado. A prova é extremamente cara, eu não tinha tempo e nem dinheiro para fazer o preparatório. Na última tentativa que eu tinha, consegui a nota de corte e só por isso eu pude participar do programa.
A: Por fim, houve alguma diferença no ambiente acadêmico (grupo de pesquisa, conferências)?
ACF: Ao chegar no exterior sofri um pouco de preconceito por ser negra e oriunda de um país latino-americano. O começo foi bem difícil. Passei por algumas experiências realmente traumatizantes com pessoas brancas da academia que se sentiam superiores a mim. Para minha sorte, essas pessoas foram poucas comparadas a quantidade de pessoas que me ajudaram na minha trajetória.
A: Gostaria de compartilhar alguma(s) experiência em particular?
ACF: Nops, ainda não tô pronta pra isso.
A: Há algo que gostaria que seus colegas que nunca sofreram preconceito soubessem?
ACF: Sim! Não basta não ser preconceituoso, é importante ter uma postura de combate ao racismo. Algumas vezes pessoas próximas a mim se sentiam incomodadas quando me viam passando por alguma situação de ataque mas eles não tinham reação e depois vinham me pedir desculpas. Infelizmente o ataque vem de onde menos esperamos, no momento em que estamos mais vulneráveis, então meu conselho é: não seja omisso!!
A: Na sua opinião, o que a comunidade pode fazer para ser mais diversa e inclusiva?
ACF: Na minha opinião a comunidade deveria se chegar mais às minorias. É desencorajador chegar em um ambiente acadêmico e não encontrar pessoas parecidas contigo. Te faz questionar se aquele espaço realmente pode ser ocupado por você. Sinto que nos últimos anos a comunidade científica tem promovido mais eventos de divulgação e acho que o caminho é esse! Precisamos do apoio da sociedade e que as minorias vejam que sim, que há espaço pra elas na comunidade acadêmica.