Este é o primeiro de uma série de textos em que o Astropontos procura conhecer um pouco mais da história de negros e negras na astronomia brasileira. Sabemos que o meio acadêmico científico é racista, queiramos ou não admitir. Por isso acreditamos que é fundamental a criação e manutenção deste espaço para a voz desses pesquisadores, para que não só possam contar um pouco do seu trabalho, mas também possam compartilhar suas trajetórias de vida e sua experiência em lidar com o preconceito racial dentro da academia. Neste texto contamos um pouco da história do Prof. Dr. Alan Alves Brito, hoje professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Gostaríamos profundamente de agradecê-lo pela oportunidade de escutar sua história.
Astropontos: Como você se identifica? Poderia compartilhar um pouco da sua trajetória?
Prof. Dr. Alan Alves Brito: Eu me chamo Alan Alves Brito, sou o segundo de cinco filhos de Dona Janice Alves Brito e de Seu Daniel da Silva Brito. Neto de Francisca Alves de Jesus (viva, com 86 anos), Ana Estrela, Domingos Justiniano e Domingos Brito. Bisneto de Mãe Velha. Sou homem negro, gay, cisgênero, nordestino (de Feira de Santana, interior da Bahia), de família pobre e Ìyàwó Dofono de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì no Ilê Axé Ogunjá, localizado no Recôncavo da Bahia. Primeiro da família, em gerações, a estudar numa universidade e o único, em gerações, a completar programas de mestrado e doutorado. Sou egresso da escola pública e completei toda a minha formação estudantil e acadêmica no sistema de educação pública e gratuita do Brasil. Graduei-me em Bacharelado em Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana, em 2001; obtive Mestrado (2004) e Doutorado (2008) em Ciências (Astronomia: Astrofísica Estelar) pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado realizei estágios no Chile, Austrália e Estados Unidos. Realizei estágios de pós-doutorado no Chile (2009-2011) e na Austrália (2008-2009; 2011-2014) em que, nesse último, atuei como Super Science Fellow na Australian National University. Desde 2014 sou professor e pesquisador no Instituto de Física da UFRGS, onde também faço parte do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas.

A: Poderia falar um pouco sobre os seus interesses em pesquisa em astronomia? Com o que trabalha?
AAB: Em Astronomia, trabalho em Astrofísica Estelar. Estou interessado em compreender como a nossa Galáxia, a Via Láctea, se formou e evoluiu. Para isso, uso espectros de alta resolução espectral (ótico e infravermelho) de estrelas localizadas em diferentes componentes da Galáxia (bojo, disco e halo), isoladas (no campo) ou em aglomerações (aglomerados abertos e globulares). Trabalho com a determinação de abundâncias de diferentes elementos químicos da tabela periódica, cuja nucleossíntese também precisa ser entendida. Nos últimos anos, o meu trabalho de pesquisa também tem se focado, parcialmente, em questões de Educação e Divulgação de Física e Astronomia, não apenas com base em temas específicos dessas áreas mas, também, em questões históricas, de coloniais, étnico-raciais, de gênero e suas intersecções em ciências exatas. Além de artigos e supervisões científicas em níveis de graduação, mestrado e doutorado, esses projetos de pesquisa culminaram, recentemente, em 2 livros de divulgação em ciências – Astrofísica Básica: a origem dos elementos químicos no Universo (Editora Appris, 2019) e Antônia e a Caça ao Tesouro Cósmico (Editora Appris, 2020).
A: Você teve dificuldade de acesso à educação básica? Sofreu preconceitos?
AAB: Eu estudei a minha vida inteira na educação básica pública no interior da Bahia. Em alguns lugares que vivemos na Bahia, sim, tive muita dificuldade de acesso. Entrei formalmente na escola – e para nunca mais parar – já na segunda série do ensino fundamental, aos 9 anos. Antes disso, a minha trajetória estudantil foi inconstante, por conta da dinâmica nômade familiar. Eu fui parcialmente alfabetizado em casa, no que se denominava “banca”. Ao mesmo tempo em que a escola foi, para mim, a ponte para outros mundos possíveis que sempre sonhei, ela foi também o lugar em que sofri muitos preconceitos, sobretudo aqueles relacionados às questões raciais e de gênero/orientação sexual. Sofri muitas agressões físicas, verbais e psicológicas. O ensino médio, realizado numa das (consideradas) melhores escolas públicas de Feira de Santana naquela época – a Escola Técnica Áureo de Oliveira Filho – foi muito complexo. A escola, embora pública, era muito elitizada e longe (exigia dois transportes por dia) de onde eu residia, Rua Nova, um bairro muito pobre de Feira de Santana. Cansei de pegar carona da escola até o centro da cidade e, de lá, caminhar por quase uma hora para chegar em casa. Muitas vezes tive que ficar na escola por conta das aulas de educação física (turno oposto) e, nesses dias, não tinha almoço. Na Escola Técnica também enfrentei muitas situações de preconceitos com marcas de gênero e de classe.

A: Como isso mudou na universidade durante a graduação? Foi melhor, pior, ou não houve mudança?
AAB: No ambiente da graduação não sofri com agressões físicas, mas, de maneira geral, o ambiente não foi menos violento. Enfrentei muitos preconceitos de classe, gênero e raça durante o processo, além das dificuldades econômicas intrínsecas para permanecer no curso. Tive bolsa de Iniciação Científica do CNPq por 3 anos e isso fez muita diferença, não só para seguir no curso (economicamente) mas também do ponto de vista acadêmico. Além disso, contei com a mentoria de dois professores (Vera Martin e Paulo Poppe). Essa mentoria foi crucial.
A: Como isso mudou na universidade durante a pós-graduação?
AAB: O ambiente da pós-graduação foi muito parecido ao da graduação. Sem agressão física, mas não menos violento. Nesses anos, também estiveram presentes muitos preconceitos de classe, gênero, raça e de origem geográfica. Quando eu deixei Feira de Santana para estudar em São Paulo eu tinha cerca de 100 reais em minha conta bancária. A passagem Feira-São Paulo foi doada pela reitora da UEFS na época, Professora Anaci Bispo Paim. Ao chegar em São Paulo, após mais de 30 horas de viagem de ônibus, fui direto (metrô e ônibus) ao Serviço Social da USP, que me abrigou eventualmente por 3 meses, até que consegui, por seleção sócio-econômica, uma vaga no CRUSP (Conjunto Residencial da USP) por 6 anos (2 de mestrado e 4 de doutorado). Nesse período eu tive bolsa de Mestrado e Doutorado da FAPESP. Tive oportunidades fantásticas na USP e na Cidade Universitária que marcaram profundamente a minha formação como pesquisador.
A: Por fim, houve alguma diferença no ambiente acadêmico (grupo de pesquisa, conferências)?
AAB: Não houve diferença. São questões que me acompanham desde sempre. A única diferença é que hoje eu ocupo um lugar em que posso falar/escrever abertamente sobre tudo isso, mas eu estou bem consciente, até mesmo pelas várias situações que continuo a enfrentar diariamente, que o fato de ser professor/pesquisador não me exime (ainda) de enfrentar situações extremas de discriminação baseadas em marcadores sociais como raça, classe, gênero e origem geográfica. São questões estruturais e estruturantes, que me acompanham desde sempre. Em diferentes intensidades e contextos, mas sempre presentes.

A: Gostaria de compartilhar alguma(s) experiência em particular?
AAB: Certo dia, após falar numa reunião, ouvi de uma estudante: “A sua presença me incomoda; a sua voz, a sua fala; tudo em você me incomoda; eu não sei o porquê, mas eu não gosto de você”. Duas semanas depois a estudante me procurou, aos prantos, para pedir desculpas e se assumir racista. Em outra situação, um segurança da universidade, ao me abordar na entrada do estacionamento de uma das faculdades, olhando fixamente para mim e para o meu cabelo e não para o selo de “serviço” (por ocupar um cargo de direção) que eu trazia no carro, disse-me: “Mano, para entrar aqui tem que ter selo”. Tenho, somente nos últimos 6 anos, mais de 150 relatos escritos de situações como essas vivenciadas por mim. Muitas delas no ambiente acadêmico.
A: Há algo que gostaria que seus colegas que nunca sofreram preconceito soubessem?
AAB: Queria que soubessem que discutir, no ambiente acadêmico, racismo, LGBTQI+fobia e outras questões de gênero, preconceitos de origem social ou geográfica e outras formas de discriminação não é mimimi. Que a ciência, como construção humana e coletiva, precisa ser diversa, inclusiva, sobretudo no País brutalmente desigual e racializado em que vivemos. Que o “pacto narcísico da branquitude”, na palavras de Cida Bento, pesquisadora negra, precisa ser quebrado.
A: Na sua opinião, o que a comunidade pode fazer para ser mais diversa e inclusiva?
AAB: As pessoas da comunidade científica, sobretudo professores/pesquisadores que trabalham permanente nas universidades, são, no Brasil, majoritariamente brancas (média de 90%), homens e bem nascidas. É preciso, primeiro, reconhecer os privilégios. Reconhecer que não há democracia racial no Brasil. Reconhecer o genocídio físico e epistêmico dos corpos negros, como parte das lógicas racializadas que são naturalizadas e que, historicamente, referendadas pela própria ciência, têm colocado as pessoas negras no lugar de subalternidade. Somente depois desses exercícios subjetivos poderemos mudar as instituições e as estruturas. Sem isso não poderemos incluir, sobretudo nos espaços de poder, as “maiorias silenciadas” (para fazer valer as ideias de outra grande pensadora negra, Lélia Gonzalez) do Brasil: mulheres (pouco mais de 50%) e negros(as) (54%).