Autores: Cecilia Payne (later Payne-Gaposchkin)
Instituição do primeiro autor: Radcliffe College (now part of Harvard)
Status: Open access
“O universo é feito principalmente de hidrogênio e ignorância”.
É verdade: somos bastante ignorantes sobre a energia escura (~ 70% do universo) e a matéria escura (~ 26% do universo). Da matéria que conhecemos (a “matéria bariônica”), cerca de 3/4 é hidrogênio!
Atualmente é aceito que quase todas as estrelas são predominantemente feitas de hidrogênio. Mas como nós sabemos disso? Digite Cecilia Payne, cuja tese de doutorado em 1925 mudou a maneira como entendemos a composição do universo. Sua tese ligou dois elementos aparentemente díspares – uma teoria do físico indiano Meghnad Saha e o sistema de classificação de estrelas da Annie Jump Cannon feito em conjunto com outras mulheres astrônomas – e fez um trabalho incrível para explicar a composição das estrelas.
A tese de Payne foi escrita como um livro dividido em três partes, que vamos explorar aqui.
Parte 1) O que se conhecia até então
Em 1925, os astrônomos realmente sabiam muito sobre os espectros estelares, e a tese de Payne começa resumindo o estado do conhecimento na época.
Observacionalmente, centenas de milhares de espectros estelares foram medidos e classificados no Catálogo Henry Draper. Este esquema de classificação (que foi desenvolvido e implementado por Annie Jump Cannon, Williamina Fleming e Antonia Maury, entre outras) separou estrelas pela intensidade relativa de várias linhas espectrais. Em particular, o sistema inicialmente classificava as estrelas de acordo com a força das linhas de absorção de Balmer do hidrogênio: as estrelas A tinham as linhas mais fortes de Balmer, as estrelas B eram as segundas mais fortes, e assim por diante.
Do lado teórico, os mecanismos físicos por trás da maioria das assinaturas no espectro estelar (Figura 1) eram razoavelmente bem compreendidos. Em 1925, era conhecido que a maioria das estrelas se comportavam como um corpo negro, produzindo uma radiação contínua. Entretanto, elementos na atmosfera da estrela absorvem parte da luz, produzindo linhas espectrais. Os comprimentos de ondas exatos dessas linhas são determinados pela energia das transições eletrônicas; um átomo só pode absorver um fóton se o fóton tem a quantidade certa de energia para excitar um de seus életrons. As linhas de absorção de Balmer, por exemplo, são produzidas por elétrons em transição do segundo nível de energia de hidrogênio para níveis de energia mais altos.

Parte 2) A teoria da ionização térmica
Com base nesse conhecimento anterior, ficou claro que as intensidades relativas das linhas espectrais são fortemente dependentes da temperatura de uma estrela. Como esta dependência de temperatura funciona? Cada linha espectral tem uma temperatura específica na qual sua intensidade aumenta. Se uma estrela é muito mais fria ou muito mais quente que esta temperatura, ou a estrela não produzirá fótons suficientes com a energia certa para excitar elétrons, ou seus átomos não terão elétrons suficientes no estado certo para serem excitados – então o espectro de linha será fraco.
Por exemplo, estrelas com temperaturas de aproximadamente 10.000 K têm as linhas mais fortes de hidrogênio Balmer. Isso ocorre porque as estrelas muito mais frias do que isso têm a maioria de seus elétrons no nível de energia mais baixo, em vez do segundo nível de energia. Como as linhas de absorção de Balmer são produzidas quando os elétrons no segundo nível de energia são excitados, isso leva a linhas de Balmer fracas. Mas estrelas muito mais quentes que 10.000 K são quentes o suficiente para ionizar a maior parte de seu hidrogênio, portanto não há elétrons ligados que possam ser excitados – levando novamente a linhas de Balmer fracas ou inexistentes.
Para quantificar este efeito, nós precisamos saber como a temperatura afeta o número de átomos que estão em estado favorável para absorver os fótons. Para saber isso, Payne (seguindo os passos de Ralph Fower e Arthur Milne) usou a teoria da ionização térmica, que foi primeiramente aplicado em atmosferas de estrelas pelo físico Meghnad Saha. Esta teoria é melhor encapsulada na equação de ionização de Saha: dado um elemento e a temperatura, esta equação informa a fração de átomos em um dado estado de ionização
Payne usou esse tipo de análise (também corrigindo por outros fatores mais complicados, como diferença de pressão causada por diferentes abundâncias de elementos) para atribuir as classes espectrais a temperaturas. A escala de temperatura publicada em sua tese é quase exatamente a mesma que usamos hoje (Figura 2)!

Parte 3) Colocando tudo junto
Payne então usou sua análise para pular uma etapa adiante e fez algo realmente revolucionário: ela inverteu a equação de Saha e a usou para descobrir a relativa abundância de elementos nas estrelas. Como isso funcionou? Ao invés de considerar o momento em que a linha espectral atinge intensidade máxima, Payne considerou o máximo da temperatura Tmax quando a linha aparece. Em Tmax, quase todos os átomos estão ionizados, e somente uma pequena fração de átomos estão no estado certo para absorverem fótons. Usando a equação de Saha, Payne conseguiu calcular essa fração:
onde nE é o número de átomos do elemento X capazes de absorver fótons e nT é o número total de átomos do elemento X.
Entretanto, como a linha desaparece em temperaturas a cima de , o número de átomos capazes de absorver fótons em
deve se o mínimo de fótons necessários para produzir a linha espectral. Payne assumiu que para todos os elementos químicos, esse número mínimo de átomos deve ser aproximadamente o mesmo (isto é,
é constante para todos os elementos, o que é uma suposição correta para a primeira ordem). Isso permitiu que ela calculasse as abundâncias relativas dos elementos estelares mais comuns.
Payne descobriu que a maioria dos elementos nas estrelas tinha aproximadamente a mesma abundância relativa que os elementos da crosta terrestre (isso faz sentido, dado o que sabemos hoje, já que a Terra e o Sol foram formados a partir do mesmo material). Mas o hidrogênio e o hélio eram exceções – na verdade, eles eram cerca de um milhão de vezes mais abundantes do que alguns dos outros elementos! Isso não está muito longe do que conhecemos hoje (Figura 3).

Conclusão
Quando a tese de Payne foi revista, Henry Norris Russell (do famoso diagrama de Hertzsprung-Russell) era cético em relação à sua conclusão de que o hidrogênio e o hélio eram abundantes nas estrelas. Russell convenceu Payne a suavizar sua conclusão, e a tese publicada abordou que “os valores reais (das abundâncias de H e He) derivados são considerados espúrios”.
Apenas quatro anos depois, Russel chegou a essa mesma conclusão usando um método ligeiramente diferente. No entanto, a tese de Payne ainda é a primeira evidência conclusiva de que o hidrogênio é o elemento mais abundante no universo.
Hoje, astrônomos de todo o mundo continuam a usar espectros para medir a abundância de elementos nas estrelas. Nossas técnicas estão ficando cada vez melhores; um método recentemente publicado usa até mesmo um algoritmo de aprendizado de máquina chamado rede neural artificial para determinar as abundâncias estelares dos espectros! O nome desse método? Payne – nomeado “em apreciação do trabalho inovador de Cecilia Payne-Gaposchkin em modelos espectrais físicos”
Do original em inglês: The stuff of stars, por Mia de los Reys