Uma brecha nos dados do Gaia

Se você acompanha o Astropontos, provavelmente se lembra do Gaia, um satélite da agência espacial europeia (ESA) que já catalogou mais de um bilhão de estrelas, fornecendo medidas de paralaxe com uma precisão sem precedentes. Desde a sua segunda liberação de dados em abril, já discutimos aqui várias descobertas interessantes (1,2,3,4). Muitas dessas descobertas foram possíveis simplesmente olhando para o diagrama de Hertzsprung-Russel (HR) feito com os dados do Gaia.

Graças à informação sobre a paralaxe das estrelas, que permite estimativas precisas de distância (que por sua vez permitem calcular a luminosidade de uma estrela), o Gaia tem sido um excelente recurso para estudar o diagrama HR. No artigo de hoje, os autores exploram uma característica peculiar do diagrama HR do Gaia na região de estrelas de baixa massa, tipo M.

Figura 1: o diagrama HR observacional (também chamado cor-magnitude) com dados do Gaia para estrelas mais próximas que 100 pc. A pequena brecha pode ser vista entre as duas linhas vermelhas pontilhadas que marcam magnitude absoluta G igual a 9 e 11. A brecha é mais proeminente no azul, sugerindo que ela é realçada em estrelas com baixa metalicidade (que aparecem mais azuis porque têm poucos metais absorvendo fótons em sua atmosfera).

Dê uma olhada na Figura 1. Você consegue ver a brecha onde há uma menor densidade de estrelas entre as duas linhas pontilhadas? Essa característica peculiar é o tópico do artigo de hoje. Ela aparece naturalmente quando se selecionam estrelas no Gaia mais próximas que 100 pc e se removem fontes cujos dados têm baixa qualidade. A região do diagrama HR onde essa característica aparece é composta por estrelas de sequência principal de tipo M, e a brecha ocorre mais ou menos em magnitude absoluta G igual a 10.

Antes de buscar razões físicas para a brecha, os autores buscaram certificar-se de que ela é real, isto é, não apenas um artefato dos dados do Gaia. Eles buscaram as estrelas na região da brecha em outro mapeamento fotométrico, o 2MASS, e refizeram o diagrama HR com cores no infravermelho. Como você pode ver na Figura 2, a brecha ainda está presente. O que quer que esteja acontecendo ali ocorre, portanto, tanto no ótico (Gaia) quanto no infravermelho (2MASS). Mesmo estendendo a busca para incluir estrelas até 130 pc, a brecha ainda permanece.

O que poderia estar causando uma pequena, porém significante, falta de estrelas nessa região? E por que só notamos agora?

Figura 2: dois diagramas HR utilizando as cores do 2MASS. A brecha pode ser vista acima de linha vermelha pontilhada, que marca magnitude absoluta correspondente a uma massa de 0,35 massas solares.

A resposta para a segunda pergunta é bem fácil. Antes do Gaia, simplesmente não existiam estrelas M com medidas de paralaxe precisas o suficiente para deixar essa brecha clara. Quanto à resposta para a causa da brecha, os autores de hoje têm uma ideia.

Por volta do tipo espectral M3, as estrelas se tornam completamente convectivas, enquanto estrelas M mais quentes têm apenas um envelope convectivo externo, com uma zona radiativa interna que separa o envelope do núcleo convectivo. Os autores propõem que a razão para essa brecha é justamente essa transição entre uma estrela parcialmente ou totalmente convectiva.

A evidência é bastante convincente de que essa brecha deve-se a uma mudança repentina na estrutura de estrelas M nesta região. Modelos teóricos mostram que essa transição ocorre ao redor de 0,35 massas solares, o que corresponde a uma dada magnitude absoluta, em um dado comprimento de onda, que pode ser inferida a partir de relações massa-luminosidade. Os autores exploram essa ideia utilizando isócronas (linhas no diagrama HR que representam estrelas com a mesma idade) e a brecha ocorre de fato muito, muito perto de onde os modelos teóricos prevêem a transição.

Figura 3: isócronas de PARSEC para diferentes idades e metalicidades, como indicado na figura. As linhas tracejadas representam linhas de mesma massa (esquerda) ou mesmo raio (direta). As flechas vermelhas marcam o começo e o fim da brecha. Os autores notam que talvez a inclinação da brecha diferente do descrito por massa/raio constante deva-se a variações na metalicidade.

Muitos outros estudos exploraram essa proposta como razão para a brecha, basicamente concluindo que “Sim, a brecha é devida é essa transição convectiva, mas não é tão simples.” (Isso não é uma citação direta!)

Macdonald & Gizis (2018) explicam que o processo responsável pela brecha é a fusão entre o envelope e o núcleo convectivo. Estrelas acima de uma certa massa (o valor exato depende de para quem você pergunta, não há um consenso teórico), e portanto acima da brecha, não passam por essa fusão entre as regiões convectivas e portanto permanecem parcialmente convectivas. Estrelas abaixo de uma certa massa (abaixo da brecha) são completamente convectivas mesmo antes de atingir a sequência principal. Estrelas com massa entre 0,315 e 0,345 massas solares (ou 0,34 a 0,36, se você perguntar a Baraffe & Chabrier 2018) fundem seu núcleo e envelope convectivos durante a sequência principal.

O mecanismo em jogo aqui tem a ver com a abundância de 3He, que está presente em diferentes quantidades no núcleo e no envelope. Macdonald & Gizis dizem que a fusão entre núcleo e envelope convectivos aumenta a abundância de 3He no centro da estrela, levando a um aumento repentino em luminosidade (porque 3He não absorve tanta luz) e, com isso, à brecha. Baraffe & Chabrier, por outro lado, dizem que “isso está ao contrário!” (novamente não é uma citação direta!). Eles concordam que a brecha é causada pela fusão entre envelope e núcleo, mas eles encontram que a fusão diminui a abundância de 3He no centro causando uma diminuição repentina em luminosidade, que também levaria a uma brecha.

Independente de em quem você acredita, uma coisa é certa: existe uma falta de estrelas M uma pequena região do diagrama HR e isso é estranho. Astrônomos concordam que esse decremento é causado por estrelas M de uma certa massa passando de parcialmente para completamente convectivas durante a sequência principal. A fusão entre o núcleo e o envelope dessas estrelas parece ser a causa, mas os detalhes específicos ainda estão em debate. Esperemos que a solução seja em breve revelada!

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