Título: Focus on First Sgr A* Results from the Event Horizon Telescope (artigos I-VI das observações do EHT de Sgr A*)
Autores: Kazunori Akiyama et al., Event Horizon Telescope Collaboration
Instituição do primeiro autor: Massachusetts Institute of Technology Haystack Observatory, EUA; National Astronomical Observatory of Japan, Japão; Black Hole Initiative at Harvard University, EUA.
Status: Publicado no ApJL, acesso livre
A questão do que existe no centro da Via Láctea demorou quase um século para ser respondida. Em 1932, Karl Jansky conduziu observações que detectaram ondas de rádio cada vez que seu telescópio apontava para parte da constelação de Sagitário. No começo dos anos 1950, Jack Piddington e Harry Minnet localizaram a origem desta emissão no centro Galáctico, englobando uma região conhecida como Sagittarius A. Uma fonte de rádio mais potente próxima ao centro, Sagittarius A* (Sgr A*), foi descoberta por Bruce Balick e Robert L. Brown em 1974. Astrônomos começaram a postular que este objeto era um buraco negro supermassivo, uma ideia que foi posteriormente apoiada pelo trabalho de Andrea Ghez e Reinhard Genzel, ganhadores do prêmio nobel de Física de 2020, que mostraram que esta fonte deveria ser um objeto compacto ao observar o movimento de estrelas ao seu redor. Estes são apenas algumas das milhares e milhares de pessoas que fizeram parte desta busca que durou 90 anos.

Na dia 12 de maio de 2022, o mundo descobriu que a Event Horizon Telescope Collaboration deu mais um passo para a frente. Utilizando telescópios em rádio que observam comprimentos de onda de aproximadamente 1.3 mm, o grupo de pesquisadores criou as primeiras imagens de Sgr. A*. Quando vistas em cor falsa, eles mostram um objeto em forma de rosquinha que circunda um buraco central escuro. Hoje, em uma postagem de duas partes, vamos discutir o que é o Event Horizon Telescope, por que o buraco negro no centro de nossa galáxia parece uma rosquinha, e o que podemos aprender através disso.
Crescemos acreditando que, tal como a Via Láctea, a maioria das galáxias hospeda um ou mais buracos negros supermassivos em seus centros. Estes monstros podem variar em tamanho, desde milhões até dezenas de bilhões de vezes a massa do Sol. Sgr A* é um caso típico; ele situa-se no limite inferior deste limiar de massa, tendo em torno de 4 milhões de massa solares, e não está agregando massa tanto quanto os buracos negros supermassivos existentes no centro de AGNs (núcleo galáctico ativo, do inglês Active Galactic Nuclei). Compreender Sgr A* e suas contrapartes cósmicas é um elemento chave para desenvolver modelos não só de AGNs, mas também de como as próprias galáxias se formam e evoluem. Então, como podemos construir observações precisas e detalhadas destes buracos negros supermassivos? Aí entra o Event Horizon Telescope.
O Event Horizon Telescope, ou simplesmente EHT, não se trata apenas de um único telescópio. Na verdade, é uma coleção de telescópios em rádio espalhados pelo planeta. As primeiras observações do EHT, conduzidas em 2017, envolveram oito observatórios em quatro continentes. Desde então, a colaboração só cresceu, contando com a colaboração de mais de 350 pesquisadores em mais de 100 instituições. Mas então: por que se importar com um sistema tão complexo? Por que astrônomos precisariam coordenar observações entre telescópios na Antártida, Havaí, Espanha, Chile e além?

A resposta vem de um dos maiores “demônios” da astronomia: resolução angular. Devido ao efeito de difração, qualquer telescópio com um coletor de fótons (single-dish telescope, em inglês) pode discernir apenas separações angulares acima de uma certa escala determinada pelo diâmetro do coletor pelo comprimento de onda observado. Quando observamos uma fonte essencialmente pontual, como um pulsar, isso não é bem um problema, mas se desejamos fazer imagens em alta resolução de um objeto estendido, isso é uma grande barreira. Para contornar este problema, astrônomos constroem conjuntos de vários coletores chamados interferômetros, tal como o Very Large Array (VLA), ou o Atacama Large Millimeter Array (ALMA). A resolução angular de um interferômetro é limitada pela maior distância entre dois coletores, não mais o tamanho individual de cada um. Deste modo, pratos pequenos podem estar separados por dezenas de quilômetros e alcançar resoluções muitas vezes impossíveis por telescópios de um único coletor.
Interferômetros são usualmente capazes de obter imagens em rádio de resolução angular relativamente alta. Contudo, buracos negros supermassivos têm tamanhos angulares pequenos. Sgr A* aparece tão pequeno para nós como uma rosquinha na Lua. Isso torna impossível que possamos resolvê-lo utilizando o VLA ou ALMA – logo, construir telescópios com dezenas de quilômetros de distância entre si não é o suficiente. A fim de alcançar resoluções angulares pequenas o bastante para ver a região interna ao redor destes buracos negros, o time do EHT precisa de vários telescópios ao redor planeta, distantes milhares de quilômetros entre si, a fim de obter uma resolução possível por um telescópio de coletor único do tamanho da Terra (na verdade, o próprio ALMA faz parte deste conjunto!)

A colaboração do EHT foi formada a aproximadamente dez anos atrás, após anos de white papers e campanhas observacionais exploratórias. As primeiras observações foram realizadas durante o curso de uma semana e meia em abril de 2017, utilizando oito telescópios para estudar Sgr. A* e vários outros buracos negros supermassivos. Nos cinco anos transcorridos desde então, o EHT adicionou ainda mais telescópios e embarcou em três campanhas observatórias adicionais, em 2018, 2021 e 2022. A vasta maioria destes dados ainda está sendo analisada, mas em 2019, fomos agradiacos com os primeiros resultados: imagens do buraco negro M87*, situado no centro da galáxia ativa M87. Este objeto magnífico apareceu diferentemente do que esperávamos: uma rosquinha brilhante com um centro escuro. O que está acontecendo, então?
Buracos negros supermassivos estão normalmente circundados de estruturas em forma de redemoinho de gás extremamente quente. A dinâmica deste gás é influenciada pelo que é conhecido como a “mais interna órbita circular estável” (do inglês “innermost stable circular orbit“, ou ISCO), que se situa a 3 vezes o raio de Schwarzchild do centro do buraco negro. Parcelas de matéria que viajam dentro do ISCO não podem ter órbitas estáveis, portanto tomam trajetórias que provavelmente caem no horizonte de eventos do buraco negro. Ao longo do caminho, o gás emite fótons, tal como a matéria no disco de acrescão. Graças à atração gravitacional poderosa do buraco negro, esta luz traça caminhos altamente encurvados através do espaço. Quando a matéria espiralante se aproxima de uma distância 1.5 vezes o raio de Schwarzchild, algumas dessas trajetórias se dobram ao redor do buraco negro cada vez mais. A esta distância, temos a fotosfera, i.e., a distância a qual fótons podem orbitar o buraco negro – em outras palavras, a distância a qual fótons podem circular ao redor do buraco negro por um número infinito de vezes.
É justamente isso que produz o anel brilhante que vemos em imagens do Event Horizon Telescope: um grande número de fótons, correspondendo a um grande número de trajetórias que circulam o buraco negro por muitas vezes, originando-se da matéria fora da fotosfera – ou seja, não é a luz do buraco negro em si. Devido à Relatividade Geral, este anel aparece a 2.6 raios de Schwarzschild ao invés de 1.5, que é o raio verdadeiro da fotosfera. A luz emitida de dentro da fotosfera, por sua vez, está mais e mais provável de cair no horizonte de eventos do buraco negro ao invés de qualquer observador interno. Portanto, vemos cada vez menos fótons dentro da projeção da fotosfera, e aqueles que de fato vemos estão submetidos a redshifts gravitacionais severos – o desvio da luz para o vermelho devido ao efeito gravitacional. Isto significa que a região interior da projeção deste anel é extremamente escura – que é justo o motivo pelo qual chamamos de “sombra” do buraco negro. As imagens que de fato vemos não mostram um anel fino, mas sim uma região distorcida em forma de rosquinha. Isto é porque o EHT, ainda que espetacular, não apresenta resolução angular e sensibilidade perfeitas em todas as resoluções angulares.

Ano passado, o EHT revelou outro conjunto de imagens de M87*, utilizando a polarização de sua luz para traçar o campo magnético do buraco negro. Estas imagens foram “sanduichadas” entre as publicações de resultados de jatos emitidos por buracos negros supermassivos de duas outras galáxias ativas, sendo elas 3C 279 e Centaurus A. Enquanto isso, o mundo esperava por notícias das observações de Sgr A*. O buraco negro no centro da nossa galáxia apresenta o mesmo tamanho angular da M87*, pois embora a M87* esteja muito mais distante de nós (53.5 milhões de anoz-luz, aproximadamente), seu buraco negro é muito mais massivo e, portanto, fisicamente maior. Ambas fontes têm tamanho angular maior do que os outros buracos negros estudados pelo EHT, que aparecem para nós pequenos demais para enxergarmos suas sombras. Apenas Sgr A* podia revelar uma segunda “rosquinha”, e então aguardamos.
Enquanto o mundo tomava fôlego, também tomaremos. Em nossa próxima postagem, vamos conversar sobre as observações de Sgr A*, e a imagem que aguardamos por cinco anos.
Adaptado do astrobite 90 years in the making: The Event Horizon Telescope’s observations of Sgr A*, part 1, escrito por Graham Doskoch.