Título: The impact of satellite trails on Hubble Space Telescope observations
Autores: Sandor Kruk, Pablo García-Martín, Marcel Popescu, Ben Aussel, Steven Dillmann, Megan E. Perks, Tamina Lund, Bruno Merín, Ross Thomson, Samet Karadag, Mark J. McCaughrean
Instituição do primeiro autor: Max-Planck Institute for Extraterrestrial Physics (MPE), Garching bei München, Alemanha
Status: publicado na Nature Astronomy [com acesso aberto]
Constelações de satélites são grandes conjuntos de satélites em órbitas terrestres baixas (LEO, do inglês low Earth orbit; uma altitude menor que 20.000 km da superfície da Terra). Essas constelações podem passar na frente do campo de visão de telescópios, potencialmente arruinando imagens científicas e tornando fontes astrofísicas quase imensuráveis. Uma sugestão comum para evitar esse problema é mover o telescópio e seus instrumentos também para baixas órbitas. O artigo de hoje avalia o caso de um telescópio que já está em órbita, o Telescópio Espacial Hubble (HST, do inglês Hubble Space Telescope; atualmente em órbita a 538 km acima da Terra). Este estudo, o primeiro do tipo, examina o arquivo de medições do HST de 2002 a 2021 para avaliar se as observações sofrem com o efeito de constelações de satélite (spoiler alert: a resposta é sim).
O problema das constelações de satélites
À medida que mais satélites ocupam a órbita baixa da Terra, astrônomos têm expressado preocupação com o impacto na astronomia e até questionado se será possível continuar realizando observações científicas do céu a partir da Terra. Como enfatizam os autores do artigo de hoje “observações afetadas por satélites artificiais podem tornar-se inutilizáveis para pesquisas científicas”.
Essa constatação é preocupante, pois muitas carreiras e muito dinheiro são investidos para produzir instrumentos científicos e realizar campanhas de observação. Os autores comentam que muitos esforços científicos têm sido redirecionados para a mitigação dos efeitos causados por constelações de satélite para minimizar o impacto causado em grandes projetos.
Nos últimos anos, o número de satélites em baixas órbitas tem crescido consideravelmente. Com isso, é importante entender se de fato mover telescópios para baixas órbitas pode ser uma solução para evitar o impacto desses satélites na astronomia. O HST fornece a oportunidade perfeita para testar o impacto das megaconstelações de satélites na astronomia feita a partir do espaço. Os autores de hoje estudaram imagens do arquivo do HST, obtidas entre 2002 a 2021, para descobrir qual porcentagem de imagens foi afetada por satélites e como esse número mudou com o tempo.
Identificando o efeito de satélites
O principal efeito de satélites é introduzir um rastro de luz em imagens astronômicas. Isso é porque o satélite está seguindo uma trajetória distinta das estrelas e galáxias sendo observadas. O rastro de luz essencialmente traça a trajetória do satélite no céu. O tamanho desses rastros nos dados do HST varia dependendo da localização dos satélites. Aqueles na porção superior da região de LEO (definida como 1.000 a 2.000 km pelos autores) serão visíveis para o HST com mais frequência, pois o campo de visão da câmera cobre mais dessas órbitas. Portanto, os satélites nesse intervalo aparecerão com mais frequência nos dados. Por outro lado, a grande distância entre esses satélites e o HST significa que os rastros são estreitos, conforme mostrado na Figura 1a (canto superior esquerdo e meio). Já os satélites mais próximos da órbita do HST, embora sejam observados com menos frequência, terão rastros largos nos dados (Figura 1a, canto superior direito). Uma extensão de 2.000 km pode parecer um amplo espaço para os satélites ocuparem em LEO, mas uma das principais órbitas do Starlink (projeto que é um dos principais responsáveis pelo rápido aumento do número de satélites em LEO) fica a 550 km da superfície da Terra – apenas 12 km acima do HST. Os autores calculam que esses satélites produzirão um rastro de 120 pixels na Advanced Camera for Surveys (ACS), uma das câmeras a bordo do HST, impactando a ciência que pode ser realizado com os dados coletados.

Os autores compararam dois métodos diferentes de aprendizado de máquina para identificar os rastro de satélite em dois tipos de imagens do HST: exposições individuais (~ 11min) e imagens combinadas (ou empilhadas, ~ 35 min) disponíveis no arquivo do HST.
O primeiro algoritmo de aprendizado de máquina é um que já existe no campo, DrizzlePac, historicamente aplicado para rejeitar raios cósmicos (partículas de alta energia cuja origem e natureza é ainda objeto de estudo na astronomia). Esse algoritmo é um “classificador binário”, o que significa que ele simplesmente aceita ou rejeita imagens com base em um critério definido. Embora esse método seja bom para identificar rastros de satélite em exposições individuais (de 114.607 imagens, 3.157 exposições individuais contendo rastros foram encontradas, das quais apenas 205 casos não foram identificados corretamente), os autores constataram que esse método não pode ser facilmente adaptado para remover os rastros, pois o efeito causado pode ser muito maior do que ocorre para raios cósmicos (como mostrado nos exemplos da Fig. 1b).
O segundo algoritmo de aprendizado de máquina, o algoritmo de detecção de vários objetos do Google AutoML Vision, foi testado nas imagens compostas. Esse método é um pouco mais complexo que o anterior, pois usa um modelo de aprendizado profundo construído a partir de um algoritmo de busca de rede neural. Uma rede neural difere de uma classificação binária porque pode incluir pesos ou probabilidades.
Para treinar o algoritmo, os autores do artigo usaram rastros identificados por voluntários em ciência cidadã por meio do Zooniverse Hubble Asteroid Hunter. Em 149.816 imagens compostas do HST, o segundo método detectou 7.990 rastros de satélites em 4.322 imagens. Como o método anterior, o classificador não estava correto 100% das vezes e, portanto, os autores inspecionaram as classificações, localizando e descartando 1.387 imagens com rastros não causados por satélites. No final, 3.217 rastros de satélite permaneceram nas imagens compostas. Os autores concluem que ambos métodos apresentaram resultados consistentes entre os dois tipos de imagem.
Interpretando os resultados
Então, o que tudo isso significa sobre o estado da ciência do HST e o futuro da astronomia feita do espaço? Nos primeiros anos analisados, de 2002 a 2005, o HST teve 2,8 ± 0,2% de suas imagens obtidas com a ACS contaminadas por satélites. Mais de uma década depois, o mesmo instrumento viu essa fração quase dobrar para 4,3 ± 0,4% entre 2018 e 2021 (Figura 2). A Wide Field Camera 3 do HST, que tem um campo de visão mais amplo, teve um aumento semelhante de 1,2 ± 0,1% em 2009–2012 para 2,0 ± 0,2% em 2018–2021 (Figura 2).

Usando o padrão estabelecido a partir do HST, os autores consideram o futuro próximo, durante o qual o número de satélites em órbita vai aumentar de, por exemplo, 1500 satélites do Starlink e do 320 One Web (atualmente) para 60.000-100.000 na década de 2030. Eles estimam uma impressionante probabilidade de 20 a 50% de um satélite cruzar o campo de visão do HST, “aumentando a fração de imagens afetadas em uma ordem de magnitude”. Os autores observam que o aumento de 40% no número de satélites artificiais em órbita de 2005 a 2021 reflete aproximadamente o aumento de 50% no número de imagens do HST contaminadas por satélite. Em outras palavras, parece que o número de satélites em órbita está diretamente relacionado a um aumento no número de imagens afetadas.
O artigo de hoje mostra que os pacotes existentes, como o DrizzlePac, podem identificar rastros de satélite, mas não os corrige bem. Os autores postulam que usos mais sofisticados dessas ferramentas podem resultar em uma melhor performance para os rastros finos, que se assemelham a raios cósmicos. No entanto, alguns rastros de satélite são amplos, caso em que não há como salvar a imagem, segundo os autores.
Os autores postulam ainda que para imagens mais profundas, que requerem longas exposições e múltiplas medições do mesmo campo, é mais fácil descartar as exposições afetadas antes de combinar imagens. No entanto, certas campanhas de observação do HST não podem se dar a esse luxo. Por exemplo, os programas HST SNAP normalmente consistem em apenas algumas exposições. Sem dúvida, as conversas continuarão entre a indústria, a política e a ciência, à medida que a proliferação de economias baseadas no espaço continua a se cruzar com a astronomia observacional.
Adaptado de Moving Telescopes to Orbit Does Not Outrun Satellite Constellations, escrito por Lindsay DeMarchi.
